O queratocone é uma doença deformativa da Córnea, não inflamatória, com potencial para comprometer significativamente a acuidade visual, embora possa apresentar um espectro de gravidade bastante diverso em cada caso.
Afeta sensivelmente 1 a cada 2000 pessoas, e surge de um modo geral entre os 15 e os 20 anos, porém quase sempre de uma forma insidiosa e clinicamente subtil, mas seguramente progressiva. Envolve igualmente ambos os sexos e todos os grupos étnicos.
A apresentação é virtualmente sempre bilateral, mas por vezes bastante assimétrica entre ambos os olhos. A deformação setorial da córnea localiza-se preferencialmente na região paracentral infero-temporal.
A etiologia desta patologia não está intimamente esclarecida, mas existe um vínculo genético importante (10% dos casos com história familiar) e fatores bioquímicos e físicos identificados, bem como a associação a outras patologias oculares (atopia, queratoconjuntivite vernal) e sistémicas (Síndromes de Down, Turner, Marfan, Elhers-Danlos, Osteogénese imperfeita).
A fisiopatologia desta entidade reside basicamente numa atividade aumentada de enzimas proteolíticas, e diminuída dos seus inibidores, que conduz a uma digestão acelerada do tecido conjuntivo da córnea, adelgaçamento estromal e diminuição da estabilidade biomecânica da córnea.
O impacto visual desta patologia decorre do facto de existir uma deformação localizada na principal lente do sistema ótico do olho, a córnea, que gera um desacerto na frente de onda de luz que progride para dentro do olho em direção à retina; dada a irregularidade desta frente de onda, o erro de focagem com ela criado não consiste numa simples refração de miopia ou astigmatismo regular, mas antes em aberrações óticas de alta ordem, que, a não ser em casos leves ou incipientes, não são possíveis compensar com óculos ou lentes de contacto hidrófilas comuns.
O diagnóstico do queratocone pode inicialmente ser levantado por queixas de dificuldade visual marcada, em idade característica, e por alterações frequentes da graduação em pouco espaço de tempo. Existem alterações específicas observáveis no exame microscópico da córnea, mas os casos mais subtis podem apenas ser diagnosticados pela análise morfológica e das aberrações óticas da córnea, efetuada de uma forma muito apurada e precisa com os modernos equipamentos de topografia/tomografia de córnea.
A orientação clínica desta patologia depende da sua gravidade, fase de evolução (valorizada pela análise da anatomia corneana, das aberrações óticas e da acuidade visual) e da existência ou não de progressão documentada. Como comentado previamente, a reabilitação visual destes doentes pode apenas basear-se na correção com óculos ou lentes de contacto hidrófilas comuns nos casos leves; casos mais avançados só melhoram significativamente com a adaptação de lentes contacto com desenhos especiais, do tipo rígidas gás-permeável ou híbridas, ou com procedimentos cirúrgicos que objetivam regularizar a superfície da córnea por estiramento, sob implantação de segmentos de anéis de forma personalizada; os casos mais graves, com deformação exuberante da córnea ou fenómenos de cicatrização no ápex, continuam a necessitar ser tratados com transplante de córnea, total ou lamelar.
Todavia, nenhuma destas formas de reabilitação visual, adaptadas a cada fase de evolução e a cada caso concreto, trata a causa da ectasia ou impede a sua progressão; para além disso, dada a complexidade, invasibilidade e possíveis complicações crescentes com o nível de gravidade, tem todo o interesse a possibilidade de suster a progressão desta patologia numa fase tão precoce quanto possível, prevenindo a evolução para apresentações mais avançadas e a necessidade de tratamentos mais agressivos e limitativos da qualidade de vida dos doentes. Foi nesse sentido que se desenvolveu o tratamento designado cross-linking do colagénio corneano. Trata-se de um procedimento que permite estabilizar ou no mínimo atrasar a progressão do queratocone, proporcionando ainda em alguns casos algum grau de melhoria visual. Os estudos com follow-up mais longo sugerem que esta estabilização se sustenta no tempo, sem necessidade de re-tratamentos na grande maioria dos casos.
O procedimento baseia-se na exposição controlada da córnea a radiação ultravioleta A (370nm de comprimento de onda), após impregnação do estroma com Vitamina B2 (riboflavina) a 0,1%, que atua como foto-sensibilizador. Este processo foto-químico promove ligações cruzadas entre as fibrilas de colagénio do estroma corneano e também alterações bioquímicas na matriz proteica que o envolve. Ao absorver a UV-A, a riboflavina impossibilita também a penetração mais profunda no olho e a lesão de outras estruturas oculares, sendo a exposição das mesmas muito inferior ao limiar de toxicidade. Diversos estudos laboratoriais comprovam a alteração das propriedades físico-químicas do estroma da córnea, que conduz a um incremento da sua rigidez biomecânica, de forma persistente no tempo. Este procedimento foi desenvolvido e tem sido aplicado desde há cerca de 15 anos, existindo múltiplos estudos prospetivos, incluindo doentes em idade pediátrica, a documentar a estabilização da doença na grande maioria dos olhos tratados, com escassas complicações, e em alguns casos alguma melhoria associada na acuidade visual e na topografia da córnea.
A preparação operatória, o procedimento em si e o pós-operatório não apresentam especial dificuldade ou transtorno para o doente.
Todavia, este tratamento, que objetiva suster a evolução do queratocone, tem indicação apenas nos casos evolutivos, com progressão documentada, e deve respeitar critérios de inclusão, nomeadamente um espessura mínima de córnea de 400 micras.